O silêncio fala?

por Willian Diego de Almeida

Diante da velocidade das informações que têm circulado na sociedade, somos cada vez mais convocados, no cenário do dia a dia, a realizar atividades de maneira rápida e eficiente, provocando, muitas vezes, estresse, crises de ansiedade, irritação e pouca atenção para a importância do nosso sentido existencial. A meu ver, nós mais reagimos às circunstâncias e aos impulsos sociais, de maneira maquinal, do que buscamos refletir a respeito do que estamos fazendo.
Mas, quando despertamos para essa questão, a nossa maturidade nos conduz a ver o tanto que as situações que vivenciamos poderiam ser tecidas de maneira diferente. E um dos pontos que parecem fazer parte desse gesto de refletir para depois agir é justamente o silêncio.
Para muitos, especialmente quando se refere a aspectos filosóficos e religiosos, o silêncio pode se tornar sinônimo de meditação, de concentração, da busca pelo interior, isto é, uma ferramenta poderosa, um gesto, um estado que pode ajudar o sujeito no seu autodescobrimento. Tudo isso é bem verdade... Mas creio também que ele pode ser entendido de diversas formas, das quais busco aqui me atentar apenas para cinco, que nos ajudam a ver o quanto o silêncio pode ser percebido como ponto positivo ou como ponto negativo.
Aliás, quero dizer, antes de mais nada, o quanto esses cinco pontos conduziram-me a pensar que o silêncio pode nos revelar e nos ensinar muito mais do que estamos acostumados; ao mesmo tempo em que ele indica, por um lado, a falta de algo, ele pode, por outro, denunciar uma abundância de sentidos, de sons, de infortúnios, de explicações. Vejamos.
De acordo com o dicionário de Ferreira (2010, p. 699), especificamente os itens um e cinco, silêncio seria o estado de quem se cala, de quem (se) mantêm em sigilo ou em segredo alguma coisa. Como sugere essa terminologia, ao lermos o dicionário o significado que imediatamente relacionamos é o de simplesmente não falar que, para mim, soa como “ficar quieto”. Vemos aqui uma possível face do silêncio: o de calar, de ocultar, a ausência da comunicação.
Já no âmbito dos estudos da mente humana, o silêncio pode ser apresentado de uma outra forma. O próprio estudioso contemporâneo da psicanálise, Augusto Cury, na sua obra O código da inteligência (2008, p. 63), nos traz a ideia de que “Só o silêncio preserva a sabedoria quando somos ameaçados, criticados, injustiçados. ”  E continua o autor a dizer que “O silêncio não é aguentar para não explodir o silêncio é o respeito pela própria inteligência, é o respeito pela própria liberdade [...]”. Portanto, aqui vemos o silêncio como um ato de pensar antes mesmo de re-agirmos, uma ferramenta que ajudar a expandir a autocrítica, a tolerância e a alcançar a sabedoria, preservando a nossa saúde mental, o nosso equilíbrio e a nossa paz.
Mas há mais um ponto que também quero ressaltar em um outro cenário: o silêncio no campo religioso, afinal, diversas vezes nós verificamos em lugares que fazem a interpretação de textos evangélicos a frase: “O silencio é uma prece”.
 Puxando para a esteira do Espiritismo, de acordo com o olhar kardequiano, no Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XIII, intitulado Que a mão esquerda não saiba o que faz a mão direita[1], o silêncio entra como um ato/gesto de caridade – caridade moral –, conforme o próprio espírito apregoa:

A caridade moral consiste em vos suportardes uns aos outros, e é o que menos fazeis nesse mundo inferior, em que estais momentaneamente encarnados. Há um grande mérito, acreditai-me, em saber calar para deixar falar um mais tolo do que vós, e é também um gênero de caridade. Saber ser surdo quando uma palavra irônica escapar de uma boca habituada a escarnecer [...]. (KARDEC, 2012, p. 184, grifos meus)
 Em meu entender, esse belíssimo gesto de “calar”, sinônimo de saber silenciar, que um dia se tornará um hábito rotineiro nosso, indica uma maturidade do sujeito em sua vivência. É um ato extremamente positivo exemplificado por Jesus há milênios, ressaltando a educação espiritual e o quanto aprendemos a gerir a nossa liberdade de pensamento, o autoamor inteligente.
Essa ideia que Kardec trouxe através de um espírito amigo pode ser relacionada com a mensagem de Emmanuel, psicografada por Chico Xavier, no livro Pão Nosso (2017, p. 35), item nove, denominado Homens de fé. E espírito amigo fala:

Em todos os serviços, o concurso da palavra é sagrado e indispensável, mas aprendiz algum deverá esquecer o sublime valor do silêncio, a seu tempo, na obra superior do aperfeiçoamento de si mesmo, a fim de que a ponderação se faça ouvida, dentro da própria alma, norteando-lhe os destinos. (grifos meus)
 Podemos observar nessas duas passagens, no Evangelho e na obra de Emmanuel, o quanto o silêncio entra como ponto de superação, de conhecimento, de educação, de abnegação, altruísmo, beneficência e amor, de transformação de si e do outro. Isto é, a manifestação do silêncio constitui um status de necessidade para a nossa evolução, assumindo um caráter extremamente positivo, pois ajuda evitar o estabelecimento das tensões e dos conflitos.
Entretanto, a sedução desse discurso de melhoria pode nos levar a fazer interpretações bem equivocadas, podendo gerar significados negativos. Dessa maneira, há outra face – quarta – que o silêncio pode denunciar: a do voto do silêncio. Kardec, na questão 772, O livro do Espíritos (2004, p. 442), que o silêncio não pode ser interpretado como forma de insulamento, de exclusão de si mesmo, das suas opiniões em detrimento de uma ilusória ideia de que isso traria a paz. Indagando os espíritos, o estudioso tem a seguinte resposta (seguida de sua explicação):

772. Que pensar do voto de silêncio prescrito por algumas seitas, desde a mais remota antiguidade?
“Perguntai, antes, a vós mesmos se a palavra é faculdade natural e por que Deus a concedeu ao homem. Deus condena o abuso e não o uso das faculdades que lhe outorgou. Entretanto, o silêncio é útil, pois no silêncio pões em prática o recolhimento; teu espírito se torna mais livre e pode entrar em comunicação conosco. Mas o voto de silêncio é uma tolice. Sem dúvida obedecem a boa intenção os que consideram essas privações como atos de virtude. Enganam-se, no entanto, porque não compreendem suficientemente as verdadeiras leis de Deus. ”

O voto de silêncio absoluto, do mesmo modo que o voto de insulamento, priva o homem das relações sociais que lhe podem facultar ocasiões de fazer o bem e de cumprir a lei do progresso.
 Esse recorte extraído do Capítulo VII – Da lei de sociedade, nos faz observar que se não nos atentarmos para determinados gestos de interpretação, o silêncio também poderá produzir um sentido contrário ao da instrução preciosa, ou seja, o silêncio como resguardo pode ser falso e perigoso. Portanto, a questão do silêncio depende da situação e tem que passar pelo nosso crivo da razão.
Pegando gancho nesse ponto, adentro na última “face” que quero falar, e a que provocou essa sintética escrita: a do silêncio não como a falta de falar, o exercício para o equilíbrio mental, a autoeducação e muito menos como um voto de privação de si com a sociedade. Quero pensar o silêncio como a abundância de algo.
Num mundo que infelizmente ainda tem prezado pela individualidade, pelo egoísmo, pelo narcisismo, temos a falsa e perigosa ideia de controle de si mesmo, quando não (ilusoriamente) sobre os outros. Vemos pessoas falando a respeito do trabalho, do sucesso, do namoro, do divino, etc., muitas vezes sem refletir se a “verdade” que está sendo lançada é boa ou não.
Mas se de um lado há os que falam, do outro há os que pouco (ou nada) articulam verbalmente. Para mim, essas pessoas caladas dizem muito dos outros e de si mesmas. E esse silêncio pode ser interpretado, para alguns, como um gesto que visa não “perturbar” o próximo. Contudo, esse aceno “caritativo” pode denunciar que esse irmão não fala em razão dos seus próprios infortúnios ocultos o castrarem, por não conseguir sair da zona do anonimato e expressar o que ele sente.
Assim, têm pessoas falam sem dizer a mínima produção de voz, um mínimo gesto. Esse é o silêncio que me parece não ser o de um simples calar, de uma autocrítica, uma prece ou um gesto de caridade, mas, sim, um arquivo de ideias que significa muito mais do que pensamos: é o aspecto emocional e/ou espiritual que está fragilizado e que está implorando um mínimo de atenção.  Tanto é que muitos distribuem “[...] um sorriso social que nem sempre espelha nosso clima emocional” (CURY, 2008, p. 12).
De tal modo, o silêncio de um próximo nosso pode ser mais eloquente do que pensamos. Ele fala, grita, clama, traz infortúnios ocultos, angústias e responde sem mencionar um dizer sequer. Às vezes deixamos de perceber isso – talvez propositalmente – em razão das múltiplas atividades que temos que fazer. Quantas vezes escuto frases do tipo “Já tenho muito trabalho para fazer, como vou saber o que se passa na cabeça do próximo?”, “Não sou adivinho! Se ele quiser que fale”, “Não sou psicólogo!”, “É muito chato ficar falando disso”, “Não tenho paciência, e minha personalidade é assim, não adianta que não sou mudar”.
Então, o que significa agir como um espírita se não conseguimos parar para observar o berro desesperador do nosso próximo que está escondido atrás do seu silenciamento perturbador? Quanto frio, cruel e tristes podemos nos tornar ao dominar todas as teorias, sermos o melhor profissional, ter sucesso e bens, falarmos diversas línguas, mas sermos incapazes de compreender a profundidade do silêncio, por exemplo, de um olhar que busca em nós sanar a fome moral e emocional.
A mais bela e antiga arte da humanidade, a de escutar, não deve ser relacionada somente ao que se fala, mas também ao que nos é silenciado. Reconhecer o outro, traduzir o silêncio alheio é também uma forma de educação de si mesmo, uma forma de diminuir as angústias, de retirar o amargor que reveste os infortúnios da vida.
Uma vez reconhecido, esse silêncio, que pode ser o irmão mais próximo da aflição, pode ser visto como uma abertura, uma rachadura possível pela qual o nosso amor poderá entrar com palavras meigas e consoladoras. Esse gesto de ouvir sem escutar funciona como um agasalho que protegerá os envolvidos do frio da solidão, como um alimento que tomará o espaço da fome emocional, afinal de contas, “Esses infortúnios discretos e ocultos são os que a verdadeira generosidade sabe descobrir, sem esperar que peçam assistência” (KARDEC, 2013, p. 180).
Por isso temos que criar o hábito de nos autoeducar, seja por meio de estudos teóricos, seja por meio de experiências vividas, para que os aprendizados nos direcionem, enquadrando-se perfeitamente às nossas práticas diárias. Só assim a nossa condição humana entenderemos melhor que o silêncio do outro nem sempre é um ato de positividade, mas de chamamento para que possamos transformar em terreno fértil, com as águas da fraternidade e de amor, o que outrora era observado somente como uma região desértica de companheirismo e de sentimentos.


[1] Cf. nas Instruções dos Espíritos, item A caridade material e a caridade moral, na passagem fornecida pela Irmã Rosália, em Paris, 1860.

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